Ao eterno Rei, minha definitiva reverência

Pedro Henrique Brandão
7 min readJan 9, 2023

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Pelé.

É desnecessário, em qualquer parte do mundo, desde meados do século XX, que essas quatro letras venham acompanhadas de quaisquer outras apresentações.

Pelé morreu.

Por todo o significado dessas quatro letras, é impossível acreditar na afirmação de primeira. Em voz alta então, é quase um sacrilégio. É como se essa frase fizesse desaparecer um pouco do mundo que conhecemos quando desembarcamos no planeta. É, aliás, isso mesmo, o fim de uma era.

No dia 25 de novembro de 2020, ao assistir o noticiário mundial alardeando a morte de Diego Armando Maradona, escrevi com um nó na garganta que “Sem Maradona, o futebol é menos futebol”. Um texto carregado de emoção e escrito em 25 minutos dentro do carro no estacionamento do trabalho.

Não havia tempo para depurar a notícia da morte de Maradona, com El Diez tudo era instantâneo, simultâneo e intenso. E por que começar o texto sobre a morte de Pelé falando de Maradona?

Com Pelé precisei de tempo para decantar a notícia da partida do Rei. O relógio marcava 15h56 quando uma mensagem chegou no whatsapp: Pelé morreu. Duas palavras que juntas tinham um sentindo ininteligível.

A internação de um mês, o estado de saúde cada dia mais debilitado, o grave diagnóstico exposto ao público há mais de um ano, a declaração dos médicos falando em “cuidados paliativos”, a idade avançada…

Por mais que todos os indícios apontassem para o inevitável, nada era suficiente para fazer crer que o super homem Pelé não ia conseguir driblar mais um adversário e sair de cabeça erguida para dar mais uma assistência ou anotar o gol 1284.

Foto: Repodrução/Instagram

A vida de Pelé é toda cinematográfica e deixa espaço para acreditar que sim, Deus olhou para Três Corações no dia 23 de outubro de 1940, apontou para o ventre de dona Celeste e sentenciou: ele vai ser o cara!

Aos 9 anos de idade viu o pai Dondinho chorar o Maracanazo ao pé do rádio e prometeu:

“Não chora, pai! Um dia vou ganhar uma Copa do Mundo”.

Uma não. Ganhou logo três.

Em 1958, apenas 8 anos depois da promessa ao seu Dondinho, Pelé foi a estrela, o diferencial contra soviéticos, galeses, franceses e suecos. Um menino de 17 anos com a liderança de um veterano e a técnica de um gênio.

Quatro anos depois, o Mundial para chamar de seu, mas uma lesão o tirou do time ainda na fase de grupos. Com fama e dinheiro, Pelé poderia ter voltado para o Brasil, mas preferiu ficar no Chile e incentivar os companheiros. O substituto “Amarildo, o Possesso” foi um dos mais acolhidos pelo Rei.

Na Copa de 1966, o Rei virou caça e foi presa fácil da violência desmedida e não combatida pela arbitragem. Após a precoce eliminação, o médico da Seleção Brasileira, Hilton Gosling disse:

“Em 8 dias tivemos mais lesionados do que nos últimos 8 anos. Acredito que isso significa algo”.

Tudo parecia acabado. Na Terra da Rainha, o Rei perdeu o reinado. O trono estava vago e a plebe questionava se haveria outra oportunidade para a Majestade. Quanta presunção.

É neste momento que uma das principais habilidades de Pelé vem a tona como nunca: a capacidade de controlar a mente.

Pelé foi, antes de tudo, uma fortaleza mental durante mais de meio século. Imagine um menino pobre, que conquista o mundo e não se permite perder-se pelo caminho. Quantas histórias parecidas você conhece?

Pois com Edson Arantes do Nascimento, a história foi exatamente essa. Quantas vezes você viu Pelé descontrolado? Quantas vezes Pelé se permitiu ser intempestivo? Quantas vezes Pelé teve o comportamento natural às celebridades? Nunca.

Mesmo no episódio do gol 1000, Pelé decidiu usar os holofotes do mundo que lhe focavam para dar visibilidade a quem mais precisava:

“Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha Natal das pessoas pobres, dos velhinhos cegos. Tem tantas instituições de caridade por aí. Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só em festa. Ouça o que eu estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado”.

Com o milésimo no currículo desde novembro de 1969, Pelé era dúvida para a Copa do Mundo de 1970. Colocado sob desconfiança por parte da mídia da época e também por gente do meio futebolístico, Pelé teve que ter muita resiliência para jogar sua última Copa do Mundo.

E foi assim, questionado, colocado em dúvida e desacreditado, que Pelé chegou ao Mundial de 1970 com 29 anos. Até o treinador João Saldanha resolveu jogar uma pá de cal no Rei com uma miopia inventada às vésperas da Copa.

Em nenhum momento, Pelé se rebelou. O maior de todos os tempos aceitava tudo como se cumprisse uma sina. Quando aconteceu a troca por Zagallo, porém, se deu o direito de uma conversa franca com o ex-companheiro de cancha:

“Você não vai me sacanear, né?”

Pelé ouviu de Zagallo, que o treinador contava com o Rei para ganhar a Copa do Mundo. Daí em diante, as pancadas da imprensa serviram de motivação para a maior exibição individual de um jogador numa Copa do Mundo.

Eu sei, você deve estar pensando: e Maradona, em 1986?

Sim, Dom Diego foi incrível em 86, mas em 70, Pelé foi magnifico. Maradona tinha um time mediano e precisou ser excepcional para levar homens comuns à glória. Pelé tinha um time genial e precisou ser extraterrestre para liderar gênios rumo ao tricampeonato.

Quando Pelé anotou o primeiro gol da final num cabeceio cinematográfico, o lendário zagueiro italiano, Giacinto Fachetti definiu assim o lance:

“Subimos juntos, fora do tempo, para cabecear uma bola. Eu era mais alto e tinha mais impulsão. Quando desci ao chão, olhei pra cima, perplexo. Pelé ainda estava lá, no alto, cabeceando a bola. Parecia que podia ficar no ar o tempo que quisesse”

São duas exibições extraclasse, sem dúvidas, mas Pelé teve que aprender a ser coadjuvante e fazer o simples. Alias, Pelé era o mestre da simplicidade. Era justamente na capacidade de fazer qualquer lance mirabolante parecer fácil, onde residia sua genialidade.

Pelé além dos gramados: a dimensão histórica, social e cultural do Rei

Aqui entramos de vez no comportamento extra campo do Rei. Pelé foi um símbolo de brasilidade, o signo da emancipação de um Brasil esquecido. Um Brasil silenciado por séculos estava ali, personificado em Pelé. Por muito tempo, Pelé foi o Brasil que deu certo.

Com todas as contradições brasileiras, entre tantas divergências, do super herói em campo ao homem descuidado com a prole fora das quatro linhas, o superstar que impulsionava o Santos Futebol Clube, a cidade de Santos e o Brasil mundo a fora ao marido relapso ou o cidadão que nunca se posicionou contra a ditadura, o negro que representou uma população de esquecidos à figura pública que nunca deu uma palavra contra o racismo.

E com a simplicidade que o acompanhou por toda a vida pública, Pelé foi muito além do que a maioria enxerga. Num país que não vivia um regime democrático, Pelé não tinha garantias de que teria sua integridade física preservada, caso se opusesse ao jogo político imposto.

Mesmo assim, o mitológico jogador empunhou como ninguém o nome do Brasil para o mundo todo e com isso, de uma uma forma imensurável, conseguiu evitar uma tragédia ainda maior no que diz respeito ao momento autoritário. Sobre o racismo, Pelé se elevou a símbolo maior para uma nação estruturalmente racista e a ela impôs um negro como Rei.

Muito se cobra de Pelé, mas pouco se reconhece do que sua figura representou para o Brasil. As falhas pessoais com familiares não podem ser desprezadas, mas, honestamente, diante de tamanha carga emocional a qual o homem Edson Arantes do Nascimento foi exposto, em alguma esfera da vida haveria de estourar.

Não é justificativa, não é passar pano, mas é para reconhecer que o Brasil não poderia ter um monarca livre da humanidade tão natural a cada brasileiro. E convenhamos: em campo e com a bola no pé, Pelé foi o maior de todos os tempos.

Um dia Maradona falou que a bola só foi bola quando foi chutada por ele. Pelé certa vez falou que se não tivesse nascido homem, teria nascido bola. O amor incondicional à bola e ao jogo se foi definitavamente com Pelé no último dia 29/12/2022.

Descansou aos 82 anos, o Rei Pelé, o maior jogador de futebol de todos os tempos, o homem que virou adjetivo, o símbolo máximo do Brasil e mesmo na hora da despedida, Pelé foi a síntese de brasilidade.

Foto: Placar/Reprodução

Após 45 anos sem marcar um gol ou ganhar um título, o mais aceitável seria que o povo esquecesse seu Rei. Contra as expectativas, a presença da população foi maciça com mais de 230 mil pessoas que passaram pelo velório da Vila Belmiro. Porém, os jogadores e ex-jogadores, os puxa-saco de toda uma vida, muitos dos quais sempre surfaram na onda de sucesso e se aproveitaram do brilho de Pelé, não compareceram.

Direito de escolha de cada indivíduo, mas também sintoma de uma sociedade baseada no poder da imagem. Pelé superou tudo isso e o legado será eterno, porém, um país sem memória como somos, cabe a poucos a obrigação de relembrar dia após dia os feitos do Rei.

É impossível rememorar e contemplar toda a vida de Pelé num único texto. A obra da vida Edson Arantes do Nascimento só foi possível e alcançável para o próprio Rei, que conviveu com todas os vícios e as virtudes de ser quem foi, é e será eternamente a majestade Pelé.

Foto: Luiz Paulo Machado/Placar — Reprodução

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Pedro Henrique Brandão

Não sou especialista, escrevo do que é especial pra mim. Futebol além das quatro linhas e um pitaco disso ou daquilo. Minha alucinação é suportar o dia a dia.